De posse de autorização concedida pela Justiça, o Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado do Ministério Público de Sorocaba prendeu em novembro de 2012, empresários e agentes públicos do setor de saneamento envolvidos todos acusados de fraudes em licitações e formação de cartel em concorrências públicas da cidade do interior paulista e em companhias de água de todo país, entre elas a Sabesp. Ao longo da investigação denominada Águas Claras, os promotores conseguiram mapear as ações do grupo e descobriram como eles se utilizavam de uma associação, a Brasil Medição, para estruturar as falcatruas e ajustar acordos para a disputa de concorrências públicas.
Segundo a denúncia ofertada com base na investigação, as “empresas investigadas combinavam os termos de editais de licitações e decidiam quais empresas iriam vencer determinadas licitações em regiões que também eram loteadas entre elas, subtraindo assim qualquer possibilidade de competição, já que concorrentes não integrantes da Associação Brasil Medição se viam impedidos de participar dos certames”. Além de individualizar a participação de cada um dos envolvidos na trama, o promotor Wellington Velloso abordou em sua denúncia o importante papel da associação Brasil Medição na prática do cartel. Com base em estudo da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, o promotor salientou na peça jurídica: “As associações comerciais desempenham muitas funções legítimas e positivas. Mas as reuniões das associações podem também servir como um fórum para as ações dos cartéis”.
As relações das empresas com diretores de companhias de água em outros estados, o suposto pagamento de propina feito por uma das empresas ao deputado José Guimarães, do PT, e detalhes da investigação logo surgiram no noticiário nacional. Uma das reportagens, sobre o envolvimento do grupo em fraudes na Sabesp, chamou a atenção de uma ex-funcionária da estatal. Antiga conhecedora da companhia, a ex-funcionária aproveitou o ensejo da denúncia referente à operação para revelar um esquema ainda maior que envolveria várias empresas, entre elas duas citadas na Águas Claras, e seria responsável pelo fracasso do Programa de Redução de Perdas na Sabesp.
Com base em uma farta documentação com exemplos claros da “máfia do controle de perdas de água”, a ex-funcionária preparou uma denúncia com os pormenores do esquema e encaminhou à presidente da estatal, Dilma Pena, em março de 2013. Segundo o material, assim como no caso exposto pela Águas Claras, por meio da Associação Brasileira de Ensaios Não Destrutivos (Abendi), empresas ligadas a ex-diretores da Sabesp formavam um cartel de modo a evitar a participação e conquista de contratos por empresas concorrentes. Isso só era possível, segundo o documento, por meio da solicitação de certificados técnicos concedidos pela Abendi nos editais da Sabesp.
As empresas citadas são: Enops Engenharia, Sanit Engenharia, Restor Comércio e Manutenção, BBL Engenharia, Opertec Engenharia, OPH Engenharia, VA Saneamento, Cobrape, Sanesi Engenharia, Etep Estudos Técnicos e Ercon Engenharia. Além da Enorsul Saneamento e Job Engenharia, flagradas na Águas Claras. “Se investigarem, verão que em todos os processos licitatórios ganhos pelas empresas acima relacionadas, quase não existe diminuição dos lances, e o desconto dado do lance inicial até o contratado é quase inexistente”, afirma no documento.
Na edição 788, CartaCapital havia revelado como mesmo após 1,1 bilhão de investimentos em seu Programa de Redução de Perdas, a Sabesp conseguiu o milagre de aumentar, ao invés de diminuir, seu índice de perdas. Algo parecia estar errado, mas com as informações daquela época só era possível apontar a promiscuidade entre a estatal e empresas de ex-diretores responsáveis por gerenciar o programa. Dias após a publicação da reportagem, a ex-funcionária responsável pela denúncia encaminhada no ano anterior à presidência da Sabesp entrou em contato com a revista. Disse ter medo de revelar sua identidade por causa de possíveis retaliações do mercado e da estatal, mas, além de entregar uma cópia do material colhido por ela, afirmou ser o esquema responsável pelo desperdício de 1,1 bilhão investido para diminuir as perdas no sistema de água paulista e no Programa de Uso Racional de Água (PURA).
Sem intenção de acusar qualquer um dos citados, CartaCapital analisou os dados apresentados pela ex-funcionária e complementou o trabalho ao levantar todos os contratos, editais, atas, pregões online e resultados das licitação referentes ao programa de redução de perdas e do PURA. O resultado da análise talvez explique o fato dos investimentos da Sabesp não terem alcançado o resultado esperado. Com o material é possível afirmar que os valores investidos pela Sabesp no programa foram parar nos cofres de um grupo reservado de empresas geridas por ex-diretores da estatal. Para se ter uma ideia, à época da denúncia da ex-funcionária, os diretores da Abendi eram quase todos sócios ou funcionários das empresas vencedoras das licitações.
Vamos à análise das concorrências e participantes. Primeiro um exemplo de como o certificado Abendi não é imprescindível para o Programa de Redução de Perdas é o que aconteceu no pregão 07.830/11. Em 26 de maio de 2011, a Sabesp respondeu a um pedido da Abendi, no qual ela questionava a ausência de solicitação de seu certificado no edital referente ao pregão. Com base na súmula 17 do Tribunal de Contas do Estado, a estatal informou à associação o cancelamento do certame pelo fato de em procedimento licitatório não ser “permitido exigir-se, para fins de habilitação, certificações de qualidade ou quaisquer outras não previstas em lei”.
Isolada, a decisão da Sabesp em encerrar o certame seria normal e correta. Mas ao compará-la com outras decisões, pregões e editais referentes ao mesmo Programa de Redução de Perdas, o que se percebe é que tal decisão é única e não segue os padrões da estatal. Mais: ao analisar outros recursos apresentados por empresas, fica claro o uso que a associação e as empresas fazem do certificado Abendi com o objetivo claro de limitar a participação de concorrentes de fora do grupo nos certames.
Eis um caso interessante. No mesmo ano de 2011, no pregão de número 39.847 para redução de perdas em São Miguel, pelo qual a Sabesp pagou 1,6 milhão de reais, o consórcio Proativo ML, formado pela OPH Engenharia e B&B Engenharia, só assinou o contrato após tirar do páreo o Consórcio SPH, vencedor do pregão com o menor preço. Para atingir seu objetivo, em recurso enviado á Sabesp, as empresas contestaram o fato de a vencedora não ter apresentado certificado nível II da Abendi. Ao contrário da posição defendida anteriormente no pregão 07.830, a Sabesp desclassificou o Consórcio SPH, acolheu e sagrou vencedor o consórcio Proativo ML. É proibido ou não pedir o certificado Abendi no edital?
Além do consórcio vencedor e do desclassificado, participaram da disputa mais três concorrentes. Todos são citados na denúncia da funcionária da Sabesp. Não bastasse, quase não há concorrência entre eles durante o período de ofertas do pregão. Antes do SPH e ML disputarem o menor preço, a Opertec Engenharia havia oferecido um lance de 1.831.253 de reais; a Cobrape-Restor ofertou 1.830.000; e a Enorsul 1.850.000. Caso o consórcio SPH não tivesse atuado, o Proativo ML ganharia sem oposição de suas companheiras de Abendi. Esse mesmo modus operandi, com propostas parecidas e revezamento das empresas na conquista dos certames se repete em várias dezenas de licitações. (Ver quadro)
A respeito empresas envolvidas no pregão, é preciso conhecer alguns fatos. A OPH Engenharia, integrante do consórcio vencedor, e a Opertec Engenharia foram criadas pelo mesmo ex-diretor da Sabesp José Augusto Danielides de Farias. Hoje, Farias é sócio apenas da Opertec. A Cobrape tem como proprietário o engenheiro Alceu Guérios Bittencourt. Como revelado por CartaCapital, a empresa venceu uma licitação de 80 milhões de reais com cartas marcadas para gerenciar o Projeto São Lourenço. Antes disso, havia conquistado 75 milhões de reais em contratos da estatal no período em que a esposa de Bittencourt, Marisa de Oliveira Guimarães, era assessora da diretoria de Tecnologia, Empreendimentos e Meio Ambiente da Sabesp. Somente dos programas de redução de perdas e uso racional de água, entre 2006 e 2013, a Cobrape embolsou ao menos 36 milhões de reais.
Por sua vez, a Restor tem entre os sócios o inglês Julian Simon Nicholas Thornton. Antes de virar empresário e vencedor de licitações na estatal, Thornton era convidado pela Sabesp e empresas do setor para dar palestras sobre técnicas de redução de perdas. A outra empresa participante, e citada na denúncia da ex-funcionária da Sabesp, é a Enorsul. Para conhecê-la basta ler os autos da Operação Águas Claras. Seu proprietário Waldecir Colombini, segundo o Ministério Público, era “mentor e beneficiário das combinações fraudulentas que se faziam em torno da divisão de territórios e direcionamentos de licitações”.
Vamos a outro caso, dessa vez no Programa de Uso Racional de Água. Em 2010, a Sabesp dividiu em quatro lotes a licitação para a prestação de serviços de engenharia para implantação do PURA em imóveis da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. O lote 01 ficou com o Consórcio Revita, os lotes 02 e 04 foram conquistados pelo Consórcio Cobrape/Etep e o lote 03, pela BBL Engenharia. Todas as empresas são ligadas a ex-diretores e são parte da denúncia da ex-funcionária. Além das já citadas, a BBL Engenharia, nesse certame beneficiada pelo contrato de 6,4 milhões de reais, é do ex-diretor da Sabesp Luiz Ernesto Sumam. Os contratos no programa de perdas mostram que além de ser escolhida, por 30 milhões, para gerenciar o projeto a empresa também ganhou contratos para executar obras. Do consórcio Revita, a Vitalux Eficiência Energética é de Nilton Seuaciuc. Entre 2007 e 2010, quando o engenheiro deixou a empresa para atuar como diretor da Sabesp, os negócios da consultoria com a estatal cresceram 250%. Antes Seuaciuc era funcionário da BBL Engenharia.
O caso do consórcio Cobrape/Etep, vencedor de dois lotes no valor total de 10 milhões de reais, é ainda mais interessante. Como a Cobrape já foi citada, falemos da ETEP. Atualmente a empresa uniu-se a outras três para formar a Arcadis Logos, ganhadora de uma licitação de 90 milhões para gerenciar o Programa de Perdas a partir de 2014. Entre 2004 e 2007, teve como sócio Marcelo Salles Holanda de Freitas que deixou a consultoria para assumir uma diretoria na Sabesp em 2007. A Etep venceu contratos no programa de redução de perdas e uso racional de água, entre 2006 e 2013, no valor de 43 milhões de reais. Enquanto Freitas era sócio da empresa, a Etep havia firmado 8,1 milhões de reais em contratos com a Sabesp, de forma direta ou por meio de consórcios. Após Freitas assumir o cargo público, entre 2007 e 2010, o valor saltou para 185,4 milhões de reais, ou 2.000% de aumento. Nos tempos de Sabesp, Freitas empregava em seu gabinete Marisa de Oliveira Guimarães, esposa de Alceu Guéiros Bittencourt, proprietário de sua parceira no consórcio, a Cobrape. Hoje, Freitas é sócio de um diretor da Arcadis Logos em uma companhia do setor imobiliário com sete milhões de valor de mercado.
As empresas citadas, com exceção da Restor que negou qualquer irregularidade, não responderam às perguntas enviadas por CartaCapital. A Abendi, em nota, negou qualquer tipo de prática ilícita e disse certificar profissionais das principais empresas do país. Um assessor da Sabesp informou que a empresa não pretende mais prestar esclarecimentos à revista sobre o assunto. Esse é o compromisso do governo paulista com a transparência.
Enquanto isso, o Sistema Cantareira agoniza com o menor nível de sua história. E como revelou uma pesquisa do Data Popular, seis milhões de paulistas já sofreram com a falta d’água nos últimos meses e 59% da população teme não ter água nas suas torneiras até o fim do ano.