Se o ex-governador paulista José Serra tivesse como sucessor um adversário de partido, talvez sua vida hoje fosse mais tranquila. Apesar das juras públicas de mútua admiração, Serra e o atual governador Geraldo Alckmin, ambos do PSDB, são, no mínimo, “desafetos”, como se costuma chamar dois tucanos que não se suportam. Serra não perdoa Alckmin, que não perdoa Serra. Pelo lado do ex-governador, pesa na conta negativa a candidatura à Presidência da República que Alckmin assegurou em 2006, tomando sua frente. Pelo lado de Alckmin, o passivo passa pelo apoio que lhe faltou na candidatura à prefeitura da capital, em 2008, quando Gilberto Kassab, do DEM, catalisou as simpatias serristas. Mais do que isso, o atual governador e seus correligionários ainda amargam o desprezo com que teriam sido tratados depois que Serra sucedeu Alckmin em 2006, anunciando revisão de contratos, suspensão de projetos e caça a funcionários fantasmas. A auditoria jamais foi divulgada. Agora vem o troco.
Logo depois da posse, sem alterar seu estilo manso de político interiorano, Alckmin ordenou a sua equipe que investigasse todos os contratos diretos e indiretos da administração Serra (2007-2010). A operação pente-fino foi entregue à chefia de Vicente Falconi, do Instituto de Desenvolvimento Gerencial (Indg), um especialista indicado pelo senador mineiro Aécio Neves. Sua missão é virar pelo avesso os contratos, concorrências e licitações, principalmente de obras, foco de denúncias nunca comprovadas de superfaturamento e tráfico de influência no governo Serra. Para a plateia, Alckmin justifica que vai apurar apenas possíveis irregularidades nas contas da administração anterior, para que isso sirva de modelo ao “choque de gestão” que pretende implementar em seu governo. Sua assessoria, numa nota de esclarecimento à ISTOÉ, prefere a expressão “análise criteriosa dos contratos” em vez da palavra “auditoria”. Já os serristas entenderam a iniciativa como pura retaliação. Serra acha, como disse a políticos mais próximos, que a investigação das supostas irregularidades faz parte de um jogo político que pretende esvaziar sua candidatura à presidência do PSDB e empurrá-lo a um definitivo ostracismo.
Alckmin deu ainda outros passos que tiram o fôlego de aliados de Serra ao colocar conturbadas obras do Rodoanel, da Marginal do Tietê e do Metrô da capital paulista na fronteira de um caso policial. O governador resolveu nomear policiais, promotores e até um ex-espião para rever os contratos assinados no passado na Secretaria de Logística e Transportes. Para coordenar este setor, buscou no ninho tucano um dos principais desafetos de Serra, o procurador de Justiça Saulo de Castro Abreu, ex-secretário de Segurança da primeira gestão de Alckmin (2003-2006). Com a tarefa de xeretar tudo, Abreu, por sua vez, recorreu ao coração da polícia paulista: convocou o coronel da PM João Cláudio Valério, ex-administrador do orçamento da Secretaria da Segurança Pública, para auxiliá-lo. Além disso, em vez de nomear um engenheiro para a Dersa, o secretário colocou na direção desta estatal que cuida das principais obras viárias do Estado o ex-supervisor da Febem e especialista em segurança Laurence Casagrande Lourenço. Homem da confiança de Abreu, Lourenço é ex-diretor da Kroll, uma agência de investigação internacional que ficou conhecida no Brasil depois da CPI dos Grampos na Câmara Federal, quando foi colocada sob suspeita de ligação com arapongas e escutas clandestinas. “A Kroll deu a Laurence experiência na iniciativa privada e na identificação de superfaturamento de contratos”, justificou Abreu. O posto onde toda essa experiência será colocada à prova também é significativo: a Dersa, agora sob responsabilidade do veterano da Kroll, abrigou no governo passado figuras controvertidas como o ex-diretor Paulo Vieira de Souza, o famoso Paulo Preto, acusado por tucanos de ter desfalcado o caixa de campanha presidencial de Serra. “Todos os nomes que escolhi são de pessoas de confiança, que já trabalharam comigo. É gente para tocar os projetos seriamente”, disse Abreu. Essa afirmação do secretário acabou jogando mais lenha na fogueira: “Como assim, ‘seriamente?’”, indignou-se um deputado estadual ligado a Serra que prefere o anonimato. “Que história é essa de tocar projetos seriamente? Somos de um mesmo governo, não pode haver dúvidas sobre nossa seriedade no trato da coisa pública.
A TRINCA
Falconi, Abreu e Semeghini, os homens de
Alckmin para xeretar gastos com obras e contratações
Há ainda um terceiro nome importante na equipe de Alckmin encarregado de esmiuçar o passado: Júlio Semeghini, o novo secretário de Gestão. Ele não mede palavras para falar do trabalho que tem pela frente. “Vamos olhar tudo, contrato por contrato, pasta por pasta”, afirmou Semeghini. Segundo o secretário, as investigações se estenderão por todos os setores da administração. Além das obras contratadas, a papelada de outras duas áreas merecerá cuidados especiais: comunicação e recursos humanos. A administração de Serra gastou em propaganda e publicidade R$ 329,5 milhões, 372% a mais do que o movimento de quatro anos atrás. Já na área de recursos humanos, o foco das análises será as despesas com a contratação de mão de obra terceirizada, que ultrapassaram R$ 10 bilhões, em 2009. Desse total, R$ 4,1 bilhões (sendo R$ 2,8 bilhões da administração direta e R$ 1,3 bilhão da indireta) estão sob a mira de Semeghini.
A vida de Serra também está complicada no plano da política nacional. Em maio, o PSDB vai eleger uma nova direção e Serra vê a presidência do partido como o único caminho para mantê-lo em evidência. Acontece que parlamentares ligados ao senador mineiro Aécio Neves e ao governador Geraldo Alckmin trataram de isolar José Serra da direção partidária. Eles conseguiram aprovar na quarta-feira 26 uma moção, subscrita por 54 deputados e suplentes, com a recondução de Sérgio Guerra à direção nacional do partido. “Esta lista foi uma forma infeliz de buscar a presidência do partido”, reagiu o ex-governador Alberto Goldman, aliado de Serra. “A atitude de Sérgio Guerra foi indigna e o desqualifica como presidente do partido”, atacou o deputado Jutahy Magalhãoes (BA), um dos mais vigorosos serristas. Com tamanha repercussão, mais uma vez o governador Geraldo Alckmin resolveu, com seus modos gentis, alegar desinteresse pelo assunto e desconhecimento sobre as reais pretensões de Serra. Alckmim se referiu à barulhenta movimentação tucana anti-Serra como coisa para se decidir num futuro muito distante: “Nem sei se o Serra será candidato a presidente do partido. Mas, se quiser, terá meu integral apoio”, afirmou. Este não é, claro, o tipo de frase que Serra poderia encarar como uma adesão entusiasmada